Capítulo 1 - Recalibrando

A porrada vinha em forma de uma dor de cabeça extrema.

Ikkarus, Marga e Evony sentiam que seus corpos doíam de uma forma absurda, parecia que tinham dormido por meses, o que obviamente não havia acontecido.

O Nocker antes mesmo de acordar comia o resto de um lanche que a Mixórdia havia pedido na noite anterior. Uns restos de hambúrguer que alguns tinham deixado. Acordava com o gosto de gordura na boca e lembrava que tinha reclamado na noite anterior o como aquele sanduíche não equilibrava bem em seus ingredientes e até mesmo o como a disposição deles estava errada. Onde já se viu alface embaixo do hamburguer? Mas comia com gosto, olhava então para os próprios braços e via várias marcas, como se fossem mordidas. Das marcas escorria um pouco de sangue. Assim como o coringa do filme Batman, cricatrizes alongavam ainda mais sua boca, o deixando ainda mais estranho do que já era.

Já a Condessa Evony acordava pensando no seu bebê que estava na barriga da Duquesa Liliane, sabia que os membros da Casa Fiona eram inconsequentes ao proteger aqueles que amavam e que no final isso não era inteligente. No final, sempre acabavam desgraçando as pessoas próximas à eles. Ela era um risco àquela criança que precisava ser protegido a qualquer custo. A Sidhe sentia algo em sua cabeça e leva a mão até ela sentindo uma textura diferente, eram chifres, não muito grandes, que saíam de sua testa, fazendo uma curva ao redor da sua cabeça e que ornavam perfeitamente com seus rosto e cabelos.

Marga acordava mal, mas em poucos minutos já sentia melhor, tinha uma sensação estranha onde notava alguns brilhos que nunca havia visto para onde quer que olhasse, lembrava de Alice e também do Reino dos Castelos Esquecidos e sentia uma vontade inexplicável de ir até lá novamente, ver o Inanimae do Fogo que consumia até mesmo as possibilidades das pessoas daquele vilarejo de um dia saírem daquele ciclo de fome, queria olhar cada vereda daquele lugar e andar nas motos do bando que havia conhecido. Olhava para Evony e via chifres que de forma alguma estragava aquela beleza única, a pele da Sidhe também estava levemente diferente sendo de um leve furta-cor azulado que mudava de acordo com a posição em que olhava, aquilo quase trazia alguma lembrança profunda em Marga. Quase.

Ikkarus e Evony olhavam para Marga e viam alguma mudança em seu aspecto faérico, seu olho esquerda estava completamente negro e havia um vontade de analisar e entender o que viam. Aquele olho, sem pupila, possuía pontos prateados como estrelas, havia movimento também, às vezes, algo como uma estrela cadente passava por ali, algum tipo de nebulosa surgia e desaparecia, parecendo que todo o universo estava ali.

E então, mais uma vez vinha uma enxurrada de memórias do sonho que tiveram, no sonho eles não eram eles, eram outras pessoas. Se lembravam de sonhar com a Corte do Inverno, da passagem de um Troll para a vida adulta, se lembravam das imagens que tinham visto com o fim do último resquício de Glamour que existia e com a banalidade finalmente colocando ordem nas coisas e eliminando a praga que os Kithain insistiam em ser. No sonho, havia Ísis, finalmente a última Filha do Inverno. Na lembrança eles eram taxados como doentes, uma condição chamada Síndrome de Quixote, detalhadamente explicada em um asqueroso livro repleto de banalidade e Ísis estava em tratamento. Tinham perdido as três crianças anteriores, depois de tanto tempo sem um novo Changeling surgir, aqueles três haviam sido arrastados para a degradação da Corte do Inverno, provavelmente isso aconteceria com a última também.

Todos olham então para Ídris, ele estava deitado em uma das camas, os olhos abertos fitando o nada. Seus olhos também negros agora possuíam uma pupila vertical, como fendas. Sua pele demonstrava também alguns pelo negros pelo corpo e seus dedos das mãos pareciam um pouco mais alongados com grandes unhas afiadas. Ele suava em uma espécie de transe.

A Condessa acordava se esticando graciosamente. Seu corpo doía como se tivesse passado mais tempo dormindo do que o estimado e isso a intrigava e irritava.

*Maldito corpo mortal e suas fragilidades... Até quando serei obrigada a passar por esse martírio...*

Ainda de olhos fechados a Sidhe mudava o foco do pensamento para o seu filho que estava na barriga da Duquesa Liliane de Fiona. 

*Eu preciso encontrar uma maneira de salvar o meu herdeiro daquela louca inconsequente... Custe o que custar* 

Obviamente o custo jamais seria dela, Evony não era uma pessoa altruísta por natureza e seu pensamento continua vagando pelas possibilidades sombrias sobre como poderia "salvar" o seu bebê. 

Após alguns segundos se espreguiçando Evony sente algo diferente em sua cabeça e instintivamente coloca a mão no local sentido uma protuberância estranha. De sobressalto a Condessa faz surgir seu espelho mágico e passa a observar seu próprio reflexo. 

Evony percebia chifres e um leve tom azulado furta cor em sua pele que antes era branca como a neve. 

*Mas o que diabos está acontecendo?* 

A transformação era algo que irritava a Sidhe por ter sido feita sem a sua permissão. Não que ela não continuasse belíssima, afinal de contas uma criatura única como ela era incapaz de ser nada menos do que esplendorosa. Sua mente trabalhava rápido para assimilar as mudanças. 

*Olhando bem até que parece uma coroa... Talvez algumas jóias nos chifres possam complementar o look... O azul combina muito com o meu voile... Mas quem diabos fez isso comigo?*

Após se observar profundamente por vários minutos antes de perceber a mudança nos demais, Evony finalmente para de prestar atenção em si por tempo suficiente para analisar a mudança em seus companheiros. Todos haviam sofrido mudanças, Ikkarus e Margarita estavam também acordados e observando o estranho fenômeno, já Idris parecia estar em alguma espécie de transe. A Sidhe se levanta e seguindo na direção de Idris para observá-lo mais atentamente buscando em sua mente algo sobre aquela estranha magia que os afetava enquanto fala aos demais: 


"- Algum de vocês faz ideia do que está acontecendo? Quem ousaria fazer algo assim conosco?"

Ídris suava enquanto estava deitado no seu transe.. parecia que ansiava por alguma coisa impossível de saber.

Evony olhava para Marga e sentia um misto de sensações, o que era estranho para a Sidhe que sentia as coisas de formas profundas, porém sempre em direcionadas. Evony sentia um pouco de raiva, mas uma vontade forte de abraçá-la. Notava também algo pousado no ombro de Marga. Um pássaro silencioso olhava para Evony diretamente nos olhos.

Ela sabia do que se tratava aquele tipo de pássaro, se ela via e o pássaro não cantava, era sinal de que Marga já teria um juramento dos enamorados com alguém que foi quebrado. Racionalmente era assim que pensava, mas sentia de uma forma profunda que aquele pássaro olhava para ELA, que ela tinha algo a ver com isso. A lembrança que a Sidhe tinha da Troll ainda misturava e bagunçava mais ainda as coisas. Se lembrava de ter prometido fazer o juramento dos Enamorados uma vez que estivessem em segurança. Lembrava do quanto queria ter feito o juramento ali na mesma hora, mas a Troll em seu senso de dever achou melhor esperar um momento mais oportuno. Lembrava até alguns detalhes, que pensava em chamar alguém da Casa Fiona para ser o celebrante daquele amor.



Mas agora era só confusão e abandono com um juramento dos enamorados que tinha relação com ela e não sabia do que se tratava. E com a sensação de que sua verdadeira amada provavelmente estava perdida para sempre.

Marga se sentia... diferente.

*Isso é... Ressaca?*

Luzes brilhavam como pequenos vaga-lumes em seu campo de visão e uma dor de cabeça que martelava os chifres da Cabrita mal deixavam com que ela concatenasse ideia alguma por alguns minutos. Seu corpo mais uma vez não a decepcionava. A dor de cabeça passa, mas as luzes...

*A menina Alice... Como pudemos esquecer dela?*

O pensamento lhe veio como se sugerido pelo próprio Sonhar. Quem era Alice? O Fogo da Fome a trazia um aperto no estômago à mera lembrança juntamente com um certo respeito conquistado pelo Inanimae. Ao olhar em volta para voltar ao Freehold não apenas de corpo mas tembém de espírito, Marga repara em Ikkarus e sua boca bizarramente familiar. Ele não era assim.

*Sangue e fome... É Ikkarus, mas é Ikkarus?*

Nessa mesma linha, a Sátiro se levanta e bate de leve com os cascos no chão. Sentia um ímpeto de caminhar um pouco e ao se mover percebe um pequeno chacoalhar de penas em seu ombro. Automaticamente o pensamento vem:

*É só Asiri... Asiri? De onde ele veio? Porque dei a ele um nome*

Um pássaro emudecido, cria de uma jura de amor traído repousava em seu ombro. Seguindo o olhar do pássaro recai o seu prórpio sobre a Condessa com curiosidade. Haviam chifres que rasgavam sua tez antes imaculada e agora, azulada em uma perfeita harmonia imperfeita. Flashes inundavam sua cabeça levando mais uma martelada de informações que pareciam memórias, mas não desta existência como Alice. De alguma outra vida que não era sua, mas que era sua. Que de alguma forma fazia parte de sua estrada. Um misto de sentimentos estranhos invade seu coração. Ao olhar para a Condessa que agora possuía chifres como ela, tem uma angústia que não lembrava de sentir antes daquele intensidade.

*Me perdoe pelo que não lembro, meu amor.*

O pensamento lhe vem familiar, porém estranho. Nunca havia feito um juramento daqueles com alguém. E se fizesse uma jura Sátiro, certamente não seria por uma noite -ou várias- de lascívia com alguém que ela sabia ter por ela um sentimento de posse. Apesar de bela, a Condessa era quente em luxúria, mas fria em seu amor.

Seus olhos marejam em uma culpa estranha e desvia o olhar para as pequenas luzes que se intensificavam em brilhar lhe guiando para o Eshu. Ao ouvir a pergunta da Condessa, se recompõe rapidamente e se aproxima dos dois.

- Não faço ideia do que está acontecendo também. É como se tivesse acordado de um coma do tanto que acho que dormi. - responde num chacoalhar de cabeça, voltando ao tempo presente.

Vai para o outro lado de Ídris. Passa a mão em seu corpo como um afago sentindo os pelos negros até seus dedos chegarem às mãos compridas que se agudavam em pequenas garras. Não era a forma Unseelie de seu amigo... E porquê ele não acordava?

Toca o rosto do Eshu em transe e encara seus olhos perdidos.

- Ele sabe que nós sempre sabemos para onde devemos ir. Não pode estar perdido... Onde quer que ele esteja, é onde tem que estar neste momento.-

A fala flui estranhamente natural logo que seu universo particular se troca com o do Eshu. Ela então finalmente entende que não apenas os outros mudaram. Algo nela também mudara. As estrelas que cintilavam nos olhos de Ídris confortavelmente se encaixaram nas luzes aparentemente perdidas que agora Marga entendia o que eram.

Aproxima seu rosto e fala num sussurro ao ouvido do Estouvado em transe:

- Você me ensinou a voar uma vez. Não sei onde está, bichano -*bichano?*- mas você ainda precisa me ensinar a olhar as estrelas. Lembre que ainda está sob minhas vistas e proteção. Ou você pula logo pra cá ou irei buscar você onde estiver.-

Não entendia bem porque falava daquela forma. Marga não ligava para títulos, mas sentia uma nobreza de quem sabia suas origens. A Cabrita sempre extremamente sentimental experimentava naquelas palavras uma certeza que poucas vezes havia fruído.

A Condessa observava aos poucos as características também diferentes no Nocker, na Sátiro e no Eshu. Todos estavam diferentes e ao prestar mais atenção nos detalhes modificados de cada podia perceber que na verdade era como se algo os tivessem misturando com outros kiths, o que pra Condessa era um sacrilégio. 

*Troll... Por que diabos me misturar com um Troll...* por alguns instantes uma estranha sensação de que estava esquecendo de algo se apossa de Evony e ela nota o passarinho mudo no ombro de Margarita com uma estranha sensação de estar ligado aquilo e a Sátiro. Seus sentimentos de embaralham e ela engole seco sem entender nada. 

Pensando rapidamente a Sidhe tenta se lembrar de suas instruções sob o traidor conde de Rodiart da Casa Eiluned e recorda algo sobre o ritual changeling e algo parece se conectar em sua mente. 

Ela se aproxima da Sátiro e observa o Exu mais de perto enquanto toca a companheira no delicadamente no ombro de sua companheira e fala:

"- Seja lá o que for que está acontecendo com a gente, me parece ser algo relacionado ao antigo ritual changeling e eu seria capaz de apostar que está ligado aos Filhos do Inverno. Idris está preso entre mundos e é melhor que ele sai daí sozinho. Eu também poderia ordenar o seu retorno, mas isso poderia implicar em graves consequências..." 

A Sidhe se senta de maneira elegante e cruza as pernas enquanto olha para o Eshu e conversa com o restante de sua mixórdia enquanto seu fiel javali, O Porto, deita a seus pés. 

"- Vamos aguardar mais um pouco por Idris, mas se ele não voltar precisamos buscar por ajuda... Precisamos descobrir mais sobre o que está acontecendo e informar ao nosso Duque."

Ídris não parecia voltar ainda e a situação começava a ficar preocupante.. havia novas sensações e alguns pensamento intrusivos em todos naquele local..

Marga, notava que em uma das paredes do Freehold havia algo estranho, uma espécie de sombra que não deveria estar ali, a sombra tinha quase a sua altura e era mais larga que a Sátiro. Evony e Ikkarus percebem também.

A sombra parecia ficar um pouco mais densa, como se tivesse algum tipo de profundidade e se não estivessem em um Freehold, aquilo até poderia representar algum perigo.

*Que sombra é essa?*

O pensamento lhe vem mais palpável que os outros.

"- Não deveriam haver intrusos aqui... então o que é você?"


Pensa alto uma Sátiro claramente intrigada. Se aproxima da sombra para analisá-la melhor. Parecia algo que lembrava um portal estranho. Chega mais perto e cuidadosamente posiciona sua mão tentando perceber alguma passagem de ar ou luz, sem sucesso.

"- Esse negócio não deveria estar aqui. Se não fosse nosso Freehold, isso seria mais que preocupante."

Com o cuidado e delicadeza que teria ao tocar a pele de uma pessoa tímida que estivesse flertando pela primeira vez, a negra cabrita toca a sombra.
Pequenos volumes vão oscilando na escuridão da sombra e, num arroubo, saindo de dentro deste buraco, feitos aparentemente da mesma matéria que a própria escuridão, uma dezena de braços saem agarrando a cabrita pelos cascos e chifres. Ela mal tem tempo de reagir, sendo tragada pelo vazio.